6 de janeiro de 2008

As tonsilas do Fábio

(Um conto ficcional num futuro próximo - por Agnelo Figueiredo)

Ao jantar, o Fábio, 4 anitos, estava muito rabugento e foi com muita dificuldade que comeu. Só mesmo forçando. E mesmo assim, só umas colherezitas de sopa. Marco, o pai, foi deitá-lo enquanto a mãe, Sónia, arrumava a cozinha.
Sentaram-se a ver o “talk show” da TV enquanto falavam das contas que tinham para pagar nesse mês. Sónia trabalha num hipermercado e Marco é operário numa grande indústria, onde trabalha por turnos e actualmente está no que começa às seis da manhã. O programa não estava interessante e eram quase onze da noite, de modo que foram para a cama.
Sónia acordou estremunhada. Passava-se alguma coisa. Era o Fábio que chorava. Sónia foi vê-lo e encontrou-o agitado, ofegante, a escaldar. Procurou o termómetro e leu o valor da temperatura: 39,5 graus!
- Marco vem cá, o Fábio está cheio de febre, disse Sónia.
Marco levantou-se e olhou para o despertador: 1H15. “Que chatice!”
- E agora?
- Temos de o levar ao médico.
- Pois temos. Vou vestir-me num instante. Fica aí com ele.
Chegados ao Hospital de Viseu depararam com uma enorme agitação. Carros e mais carros, táxis e ambulâncias. Havia-as de todo o distrito e até da Guarda. Tudo num grande bulício.
O registo no balcão do serviço de urgência foi muito fácil e o homem da segurança logo os mandou entrar. Mas só a um deles. O outro tinha de aguardar no exterior. Foi Sónia a quem coube acompanhar o filho que foi avaliado imediatamente. O Sistema de Triagem de Manchester funcionava lindamente e foi-lhe atribuída a cor amarela. Sónia, com o Fábio ao colo, passou então para a sala de espera que estava a abarrotar. Eram 2H00 da madrugada.
Sentada na sala, Sónia observava o constante ir e vir de médicos e enfermeiros entrando e saindo dos diversos gabinetes. Por vezes aparecia à porta da sala de espera uma senhora que chamava o próximo doente. Sónia reparou que todos os que já tinha ouvido ser chamados tinham fitas cor-de-laranja e a do Fábio era amarela. E continuou a esperar. Mas estava a tornar-se muito incómodo e já não conseguia ter uma posição confortável na cadeira.
4H30. Lembrou-se de Marco que aguardava lá fora e tinha de ir trabalhar às seis da manhã. Pediu a uma auxiliar que lhe vigiasse o Fábio e pediu ao segurança que a deixasse sair para falar com o marido.
- Olha, isto está para demorar. Vai-te embora que eu alugo um táxi. Daqui a pouco tens de entrar na fábrica.
- Não. Espero por ti. Também já não deve tardar. O miúdo como é que está?
- Olha, agora está a dormitar mas continua muito quente e choraminga. Vai-te lá embora.
- Não. Já te disse que espero para irmos todos. Volta lá para dentro.
Tinha Sónia acabado de voltar à sala de espera quando deu conta de uma agitação ainda maior. Pelas conversas que captava, percebeu que estava a chegar uma VMER e uma ambulância do INEM com uma criança em estado grave que não tardaram em irromper pela porta, empurrando a maca com grande velocidade. Na sala de espera todos se entreolharam cabisbaixos e preocupados.
Sónia estava esgotada. E também enervada. Viu uma senhora enfermeira com aspecto simpático e perguntou-lhe quando seria atendido o Fábio. Ao fim e ao cabo já ali estava há mais de quatro horas. E logo a enfermeira muito solícita:
- Deixe-me ver o menino. É melhor dar-lhe água. Eu vou buscar. Sabe, isto é sempre assim. Temos sempre imensos casos muito urgentes e mesmo emergentes, e esses têm prioridade. Tem de compreender. Nós fazemos o melhor possível mas vem aqui parar gente de todo o lado. Fechou tudo. Só nós é que estamos a funcionar. Espere um pouco mais. Tenha paciência.
Sónia torceu-se na cadeira e preparou-se para esperar mais.
Já passava das oito da manhã quando a senhora habitual anunciou o nome do Fábio e Sónia logo o levou para o gabinete que lhe indicaram.
O médico fez-lhe as perguntas usuais e pediu-lhe que o deitasse. Observou, auscultou, palpou, viu ouvidos e garganta e disse:
- Pois é. O menino tem uma amigdalite. Olhe, vou-lhe receitar dois xaropes, um para a febre e outro para a infecção, e vou aqui escrever como é que lhos vai dar, está bem?
- Sim, senhor doutor.
- Então vá lá. Pode ir. As melhoras.
Marco, ao ver a mulher a sair com o Fábio, perguntou:
- Então? O que tem ele?
- Diz que é uma amigdalite. Temos de ir a uma farmácia comprar estes medicamentos.
- E mais nada? Só isso?
- Sim, só. A consulta foi uma beleza. Nem chegou a um quarto de hora. O problema foi a espera.
Já no carro, Marco perguntou:
- Olha lá, há dois anos também foi isso que o miúdo teve, não foi?
- Pois foi, exactamente. Mas dessa vez ainda resolvemos tudo em Mangualde, no SAP. Foi um instantinho. Lembras-te? Às duas e meia já estávamos na cama outra vez e não perdemos um dia de trabalho como hoje.
- Pois lembro…


E enquanto conduzia de volta a casa, aborrecido com a doença do Fábio e por ter perdido um dia de trabalho, ele e a mulher, Marco ia matutando que tudo isto vinha da tal reorganização dos serviços de saúde que o Governo tinha levado a cabo. E ele, Marco, que até tinha votado em José Sócrates e no Partido Socialista, não achava bem que a tal reorganização tivesse vindo piorar as condições de vida das pessoas. Bem sabia que era muito caro manter o SAP aberto, mas, caramba, quem é disse que a saúde era barata?

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