18 de outubro de 2011

Feira dos Santos de Mangualde - regresso ao futuro?

(texto também publicado no jornal Renascimento)

NOTA PRÉVIA:
Este texto representa um imperativo de consciência e um dever de cidadania e não deve ser confundido com qualquer posição político-partidária, atividade que não exerço.


Muita gente fala da Feira dos Santos – e da feira quinzenal – mas a maioria apenas a conhece superficialmente. Conhece-a de lá ir comprar ou passear. Ora, eu vivi no Largo do Rossio, onde se realizava, maioritariamente, a feira, durante 20 anos e, mais tarde, na Rua Valentim da Silva, onde também havia tendas da Feira dos Santos. Sou, portanto, dos que a conhecem por dentro e, por isso tenho, da nossa feira, uma visão diferente, quiçá, mais apurada.
Da Feira de há muito, recordo os aspetos mais característicos e pitorescos. Lembro bem o cheirinho das febras cozinhadas com um bochecho de vinho, ali mesmo na nossa frente, na frigideira em cima da trempe; quase que se comia o pão só com o aroma das febras. Lembro os carrinhos de choque, ao cimo do Largo, que faziam as delícias da rapaziada. Lembro as belas samarras, bem como os cobertores para o inverno. Lembro a feira dos animais, primeiro nas Carvalhas e depois no Largo Pedro Álvares Cabral (ou ao contrário, não tenho a certeza). Lembro, também, a feira do calçado, com as belas botas de cano alto para ensebar e, ainda, alguma cerâmica, alguma latoaria e até algum mobiliário artesanal. Aliás, em casa da minha mãe ainda há um conjunto de cadeiras compradas na feira há muitos anos. Era isto a feira. A dos Santos era quase igual à quinzenal, só que muito maior; tinha mais feirantes, mais “enfeirantes” e, sobretudo, muito mais carne. De resto, a carne de porco, vendida nas bancas de madeira, é que era o forte da Feira dos Santos.
Importa dizer que há quarenta e tal, cinquenta anos o comércio da vila, o retalho, era incipiente e a feira representava a oportunidade de comprar coisas que não existiam noutro lado. Nesses tempos, a Feira preenchia uma lacuna; era uma necessidade. A Feira existia porque era precisa.
Mas, da mesma forma que tenho estas recordações dos aspetos pitorescos, tenho outras bem menos agradáveis. Lembro-me que em dia de feira se acordava aí pelas 5 da manhã, estremunhados por aquele tim, tim, tim, das marretas a cravar os ferros no saibro do largo; lembro-me de abrir a porta de casa e dar de caras com as costas de uma tenda; lembro-me de sair com dificuldade e logo tropeçar nas cordas das espias; lembro-me de precisarmos de ir buscar o carro a uma garagem que tínhamos no largo, um pouco acima da casa, e não podermos porque estava tudo tapado; enfim, lembro-me bem que a Feira representava um grande transtorno, sobretudo para quem morava nos diversos largos e ruas onde a mesma se instalava.
Mais tarde, esse transtorno ultrapassou os limites do razoável. É que, entretanto, o comércio tinha-se desenvolvido mas, nos dias de feira, pouco negócio se conseguia fazer; as lojas ficavam com as montras e as portas tapadas pelas tendas e ninguém as conseguia ver. De facto, as tendas ocupavam os passeios e parte das ruas, deixando livre uma estreita faixa por onde se circulava a pé. Se fosse necessário passar um veículo, por exemplo dos bombeiros, era um caso sério.
Por isso, foi de forma natural e com assinalável regozijo de moradores e comerciantes que a feira saiu do centro da cidade e foi para a Avenida da Senhora do Castelo. Foi uma decisão particularmente acertada. Quem gostava da feira ou precisava da feira, não tinha problema: ia à feira. Quem não queria, também ficava bem, uma vez que a cidade não ficava intransitável durante dois dias, como acontecia antes. Portanto, tudo bem para uns e outros e muito democrático.
Devo dizer que pertenço ao segundo grupo. A feira de hoje diz-me pouco ou nada. E porquê? Porque todos aqueles aspetos pitorescos que descrevi lá atrás, mais não são do que ecos de um passado que não volta. Basta ver que as famosas febras na frigideira se foram com a ASAE e que apenas ficaram as grelhadas. Só que essas são iguais às que se podem comer em outro lado qualquer; as típicas, as de Mangualde, eram as outras. De resto, a própria carne de porco que ainda se vende - embora pouco - é exatamente igual àquela que se pode comprar em qualquer talho. Tudo o resto desapareceu. Desapareceu e, pior, não voltará. E não voltará pela simples razão de que tudo aquilo de que a população precisa, pode ser comprado numa loja ou num qualquer hipermercado. É assim o progresso…
Então, o que é a Feira hoje em dia?
Penso que a Feira apenas existe por uma questão de tradição e não por corresponder à satisfação de qualquer necessidade. Da última vez que fui à Feira, lembro-me de caminhar centenas de metros, avenida fora, e parecer que não tinha andado nada; que estava no mesmo sítio. É que os produtos que se vendiam eram exatamente os mesmos que estavam cem ou duzentos metros antes. Calças, camisas, polos, sapatos, tudo era igual e tudo de “grandes marcas”. Centenas e centenas de metros de um tudo igual absolutamente incaracterístico.
E, em boa verdade, é isto a Feira nos dias de hoje.
Quer agora, a nossa Câmara Municipal, trazer de novo a Feira dos Santos para o centro da Cidade. Aliás, li-o do próprio Presidente da Câmara. Nem queria crer! Como é que uma pessoa normalmente equilibrada, decide um tamanho retrocesso? Por certo terá sido influenciado por algum grupo de saudosistas - que os há - que têm vindo a defender que a Feira “renascerá” se voltar para o centro. Ora, está bem de ver que esta ideia não passa de um devaneio romântico. Porquê? É muito simples: porque quem faz a Feira são os feirantes! Exatamente! Não é a Câmara que faz a feira, São, isso sim, os feirantes. Ora, os feirantes, quer seja a Feira na Avenida, no recinto, no centro da cidade ou até mesmo na Senhora do Castelo, serão sempre os mesmos. E sendo os feirantes os mesmos, o que mudará na Feira? Obviamente, nada! De resto, já houve várias tentativas para trazer algumas notas do passado à Feira - por exemplo o artesanato. Só que não passaram de meras artificialidades que não tinham, nem terão, possibilidade de sustentação. E, assim sendo, ande-se lá por onde se andar, mais mostra aqui, mais exposição ali, nada mudará.
Alto! Nada, não. Os custos serão bem elevados. Senão, vejamos:
Tendo em conta o tamanho da feira atual, é de prever que venha a ocupar todo o espaço desde o Largo Dr. Couto até ao Venâncio ou ao Modorno, incluindo a zona do mercado, o Largo das Carvalhas e a rua General Humberto Delgado. Como se garantirá a existência - e a exigência – de uma circulação de emergência? Dificilmente, não é verdade? Mas as contrapartidas não ficam por aqui. É que antigamente, os largos eram saibrados e os ferros das tendas pouco estragavam. E hoje? Como ficará uma calçada de cubinhos depois de arrancarem os ferros das espias? Devastada, não? E os nossos jardins tão esmeradamente tratados? Como irão ficar?
Disseram-me que no ano passado terão feito um inquérito à porta da Feira. Pois bem, se assim foi, tratou-se de um inquérito inválido. Foi como perguntar a um faminto se quer comer. Podia fazer-se um inquérito, sim senhor, mas teria de ser aos moradores da cidade, esses que são os afetados. Então perguntar-se-ia: Quer as tendas à porta, ou não? Quer a cidade intransitável durante 2 ou 3 dias, ou não? Quer as ruas e os passeios esburacados, ou não? Quer os jardins patinhados, ou não? Se assim fosse, os moradores seriam ouvidos, pronunciando-se. Obviamente, se o “sim” ganhasse, teria de aceitar o veredito. É o preço da democracia. Assim vou ver se consigo arranjar uma “escapadinha” para esse fim-de-semana e voltar na segunda-feira para assistir ao início da reconstrução.

Agnelo Figueiredo


Post scriptum:
Depois de saber dos cortes que o Governo me vai impor, já não vou poder dar a tal "escapadinha". Vou ser obrigado a ir à feira, quer queira, quer não, nem que seja só por ir tomar um café no Melro ou no Moderno. Ai, ai...

8 comentários:

Anónimo disse...

APOIADO!É pena que realmente haja pessoas que possam pensar de maneira diferente.
Não sei como é que é possível fazerem tamanha atrocidade a nossa cidade.
Espero que seja uma vez sem exemplo.

Alex disse...

Pois eu não concordo. Acho muito bem que a feira vote ao lugar de onde nunca deveria ter saído e que a tornou numa feira banal.

Quanto aos inconvenientes que causa aos moradores e à destruição do espaço público, cabe a CMM, que é a entidade responsável pela organização, tomar a medidas necessárias para minorar os impactos durante três dias. Penso que não será nada do outro mundo.

O pior é se chove…

Agnelo Figueiredo disse...

Aposto que o Alex não mora na zona da feira. Vem cá passear, compra umas Lewis e duas Lacoste e volta para casa. Porreiro.
Agora, se tivesse as tendas à porta, aí a conversa era outra.

Mas ainda tem outra coisa errada. É que esta é mesmo uma feira banal. Os artigos que se vendem são os mesmos de uma ponta à outra. Ainda quer maior banalidade?
É tão banal como qualquer outra. A diferença é que as cidades decentes não as fazem no centro. Têm zonas próprias.

Alex disse...

Eng. Agnelo Figueiredo

É verdade, não moro na zona da feira. Moro em Alfragide mas, como tenho casa em Abrunhosa do Mato, vou quase todos os anos a Mangualde no dia da Feira dos Santos com o meu grupo de amigos como é tradição. Mas confesso que já não compro as Lewis e Lacoste desde o dia em que tiveram a brilhante ideia de deportar a feira para o sopé da Srª do Castelo e a converteram numa feira banal.

E tal como eu muita gente faz o mesmo – pura e simplesmente não põe lá os pés.

Em conversas que mantenho com pessoas daqui da zona de Lisboa, notam algum “assobio beirão” na minha pronúncia e informo-os que sou de Mangualde. Alguns conhecem a Cidade, referem-se quase sempre à Feira dos Santos e as febras, os pastéis do patronato, a Senhora do Castelo, as festas da cidade e, mais recentemente, a praia artificial. São estas as referências que têm da sua Cidade.

No que se refere à Feira dos Santos, dizem-me, geralmente beirões, que não fazem intenções de lá voltar, porque se “fartaram de andar a última vez que lá foram e que aquilo já não tem piada nenhuma”.

Eu também partilho essa opinião. E espero que este retorno seja benéfico para todos.

Compreendo que para alguns moradores a feira seja o equivalente a três dias de transtorno. Mas para o comércio local, com tanta gente, as oportunidades de negócio são provavelmente irrepetíveis.

Agnelo Figueiredo disse...

Não é isso Alex.
Se os 3 dias de paralisação servissem para algo, então até se aguentava.
Só que, hoje, serve para quê?
Contrafacção?
É só isso que há na feira. Nada mais.
E isso não muda por ser no centro.

Já agora também lhe vou dizer que o "caminhar muito" vai ser exatamente igual, ou ainda pior. É que a malta vai ter de deixar os carros em casa do caraças. Aliás, os próprios moradores, muitos deles sem garagem, vão ter de encontar um sítio para colocarem os automóveis. Temo que, bem vistas as coisas, os "visitantes" tenham de caminhar mais do que se fosse na avenida.

Quanto ao comércio local, concedo na parte que concerne aos cafés e restaurantes. De resto, pouco mais comércio temos. Não me consta que os minimercados, as ópticas e as lojas de telemóveis façam qualquer negócio. Provavelmente até estarão fechados. Sobra uma ou duas lojas de vestuário... sem contrafacção.

ASC disse...

Quem sabe daqui a 2/3 anos consegue-se uma feira igual a de antigamente.Comprar botas para ensebar e quem sabe de carne de porco d eprodução caseira. parece-me que estes resfriamentos vainos levar umas décadas atras. Ai os saudosistas terão a oportunidade de dizer.....no meu tempo comprava-se roupa de "marca". Agora passando a frente. Não vale a pena chuvar no molhado. O contexto mudou, impossível reviver o passado. Para dançar o palco faz jeito, mas mais importante é o par, e uma feira antiga com feirantes e gente deste tempo, só mesmo o nome de antigo no cartaz. Também por estas terras da extremadura a muitos anos, mas por cá "os mercados" tambem se adaptaram aos tempos. Aos nossos tempos.
Abraço a todos

ASC disse...

Quem sabe daqui a 2/3 anos consegue-se uma feira igual a de antigamente.Comprar botas para ensebar e quem sabe de carne de porco d eprodução caseira. parece-me que estes resfriamentos vainos levar umas décadas atras. Ai os saudosistas terão a oportunidade de dizer.....no meu tempo comprava-se roupa de "marca". Agora passando a frente. Não vale a pena chuvar no molhado. O contexto mudou, impossível reviver o passado. Para dançar o palco faz jeito, mas mais importante é o par, e uma feira antiga com feirantes e gente deste tempo, só mesmo o nome de antigo no cartaz. Também por estas terras da extremadura a muitos anos, mas por cá "os mercados" tambem se adaptaram aos tempos. Aos nossos tempos.
Abraço a todos

Anónimo disse...

vai mamar